As cidades onde nascemos nos devolvem histórias que nem sempre fazemos questão de lembrar. Então, por quê elas nos soam tão doces?
Rever mais uma vez as ruas de minha infância é transitar por caminhos de solidão, é molhar o rosto nos regatos assassinados por dejetos industriais, é condenar os peixes da memória ao esquecimento de anzóis enferrujados.
E vejo com melancolia álbuns de família e rugas sobreviventes nas mãos de minha tia.
A raridade de quintais frondosos nas casas de minha infância deixam as mangas e os jambos com gosto de quitandas. Das poucas quitandas ainda não devoradas por mercados de prateleiras impessoais.
O que eu busco aqui, além de um certo odor de bolo estrela no botequim do Zezinho? Não existe mais o bar do João Zulato nem fiapos de picolé de coco queimado entre os dentes.
Mas a arquitetura do meu longínquo afeto refaz, como por encanto, paredes cobertas de flâmulas ao lado de um poster do flamengo. E meu pai, com um copo de pinga na mão, comentando o gol de Dida no domingo anterior de Fla-Flu.
Mas meu gravador de bolso só registra minha voz. E os quintais de minha infância de heróis solitários emudecem de pássaros e atiradeiras.
Busco na melancolia das seis da tarde, na sacada do Hotel Villas, uma Ave Maria de Gounot em rádios familiares. Mas o que me chega são sons desarticulados e vulgares de grupos musicais fabricados a peso de merda por um Midas de mau hálito.
O que busco nesses becos de minha infância de tanajuras? Batalhas perdidas no moinho-açougue do pai da Consuelo com Pipinha e João Adilson como escudeiros?
O que busco em frente à janela de Lúcia? Uma saia azul marinho plissada de um colégio de moças e proibições de um tio padrasto de se encontrar com o herói das matinês de domingo, nas barraquinhas de maio da igreja do padre Antônio?
O que busco no coreto da tuba de meu pai? Uma nota, um compasso, uma retreta nos domingos de calças curtas e pés descalços, partituras em grego como cartas das sereias de Ulisses?
Dona Maria. Eu fico por aqui, inventando esperas intermináveis na fila do cinema Edgard. O filme em cartaz ainda não vi. Mas prometo decifrar o enredo, sem contar o final.
Trecho do livro 3 da trilogia do fotógrafo caolho.
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