quarta-feira, 11 de maio de 2011

Minas

     As cidades onde nascemos nos devolvem histórias que nem sempre fazemos questão de lembrar. Então, por quê elas nos soam tão doces?

     Rever mais uma vez as ruas de minha infância é transitar por caminhos de solidão, é molhar o rosto nos regatos assassinados por dejetos industriais, é condenar os peixes da memória ao esquecimento de anzóis enferrujados.

     E vejo com melancolia álbuns de família e rugas sobreviventes nas mãos de minha tia.

     A raridade de quintais frondosos nas casas de minha infância deixam as mangas e os jambos com gosto de quitandas. Das poucas quitandas ainda não devoradas por mercados de prateleiras impessoais.

     O que eu busco aqui, além de um certo odor de bolo estrela no botequim do Zezinho? Não existe mais o bar do João Zulato nem fiapos de picolé de coco queimado entre os dentes.

     Mas a arquitetura do meu longínquo afeto refaz, como por encanto, paredes cobertas de flâmulas ao lado de um poster do flamengo. E meu pai, com um copo de pinga na mão, comentando o gol de Dida no domingo anterior de Fla-Flu.

     Mas meu gravador de bolso só registra minha voz. E os quintais de minha infância de heróis solitários emudecem de pássaros e atiradeiras.

     Busco na melancolia das seis da tarde, na sacada do Hotel Villas, uma Ave Maria de Gounot em rádios familiares. Mas o que me chega são sons desarticulados e vulgares de grupos musicais fabricados a peso de merda por um Midas de mau hálito.

     O que busco nesses becos de minha infância de tanajuras? Batalhas perdidas no moinho-açougue do pai da Consuelo com Pipinha e João Adilson como escudeiros?

     O que busco em frente à janela de Lúcia? Uma saia azul marinho plissada de um colégio de moças e proibições de um tio padrasto de se encontrar com o herói das matinês de domingo, nas barraquinhas de maio da igreja do padre Antônio?

     O que busco no coreto da tuba de meu pai? Uma nota, um compasso, uma retreta  nos domingos de calças curtas e pés descalços, partituras em grego como cartas das sereias de Ulisses?

     Dona Maria. Eu fico por aqui, inventando esperas intermináveis na fila do cinema Edgard. O filme em cartaz ainda não vi. Mas prometo decifrar o enredo, sem contar o final.

                                    Trecho do livro 3 da trilogia do fotógrafo caolho.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Conversa de botequim - final -

     Já fui um habituê de bares e botecos da vida. Um grupo de pessoas afins, bebida honesta e barata, tiragostos nem tão honestos, uma variedade eclética de assuntos com a predominância do cinema. O palco pronto, o contra regra à espera de um branco inesperado, a platéia sem muito interesse degustando seus próprios dramas.
    
     Um item mais que essencial: a democratização do espaço social circulante. Melhor: o anarquismo do espaço social circulante.

     Andei por muitos. Antônio s no Rio em minha pós adolescência, Bracarense nos setenta, Bar do Cardoso e Bife Sujo por essas bandas. Ainda não havia a desagradável vizinhança de celulares de última geração com criaturas penduradas neles, vociferando em voz alta seus status ou brigas domésticas que deveriam ser restritas ao sacrosanto lar ou entre quatro paredes.
     Hoje prefiro meus poucos amigos em minha casa, jogando conversa fora ou vendo clássicos de Bergman ou Fellini, sabendo que os possíveis vizinhos estão do outro lado da parede.
     Minha ligação com eles é de cunho mais prático. Quando a venda de meus livros caem a ponto de ameaçar minhas buscas frenéticas a sebos atrás de edições raras de livros e HQs, visto meu uiniforme de pinguim e durante um tempo vou servir mesas e rosnar em voz alta para clientes chatos. Não é um bar frequentado por moças de boa estirpe. Mas dali tirei noventa por cento dos personagens de meus livros. Uma troca justa, portanto.

   E bêbados são chatos. Sempre tive a esperança de encontrar alguns como Albert Finney no filme À Sombra do Vulcão do Houston ou Antônio Pedro no Bar Esperança, do Carvana. Doce esperança.

     Eu disse que evitaria inserir trechos de meus livros aqui neste espaço, mas no presente caso, acho relevante. O personagem principal é fotógrafo de um jornal matutino além de cronista semanal. É parte de uma crônica sobre bares que cabe no último capítulo deste seriado. O livro é "Mas não se matam putas?".

     " Roniquito ( em voz alta pelo burburinho do bar": Callado!
     " Callado ( Antônio Callado ( autor de Quarup entre outros):  O que é Roniquito?
     " Roniquito: Callado, quem escreve melhor, você ou Faulkner? ( Willian Faulkner, autor de O Som e a Fúria)
     " Callado: É claro que é o Faulkner Roniquito.
     " Roniquito( elevando mais a voz): Callado, e quem é você para se comparar a Willian Faulkner?
          ( Diálogo acontecido no Antônio s, na década de sessenta, narrado pelos cronistas da época)

     " Os bares viram lendas. Quando isso acontece, só existem duas saídas: ou fecham as portas e passam a fazer parte do inconsciente coletivo alcóolico ou passam a ser frequentados pela pior escória a partir da lenda: a classe média.

     " O bar é uma instituição necessária à humanidade. Como hospitais e casas de tolerância. O dono do bar é um enfermeiro de almas solitárias e sócio minoritário nas dores de corno, na alegria da volta da mulher amada, no nascimento de um rebento esperado.

     " Terminando, meu paciente leitor, fuja dos bares que exigem comportamento de uma casa de chá. Como diria meu conterrâneo Paulo Mendes Campos, os donos dessas espeluncas deveriem ser pendurados de cabeça para baixo em praças públicas.

     " Agora minha última dica, meu desavisado leitor/leitora: quando alguém te convidar para um barzinho, com intenções sexuais ou não, faça com ele/ela o seguinte teste: quem disse as frases abaixo.

     a) impus-me a obrigação de nunca beber enquanto é dia claro e de não recusar bebida depois do anoitecer;
     b) quando tomo um drinque, me sinto outro homem, e este novo homem pede logo um drinque;
     c) na verdadeira noite escura da alma, são sempre três horas da madrugada;
     d) você é um bêbado, como um grande número de escritores. Não passa disso;
     e) todo homem está duas doses abaixo da humanidade.

     " Se ele/ela não souber de pelo menos uma delas, com certeza é um bêbado amador, ou seja, um chato de galocha. Se mesmo assim você não pular fora, vossa senhoria é tão ou mais idiota do que quem te convidou.
      Respostas do teste:
      a) H.L. Mencken
      b) Chesterton
      c) Scott Fitzgerald
      d) Hemingway para Fitizgerald
      e) Humphrey Bogart.  




            

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Conversa de botequim - parte final - recado indignado.

     Passei a manhã inteira trabalhando na postagem de hoje, sexta feira. Na hora de salvar, o sistema desapareceu como por um passe do pior tipo de mágica. Assim, na segunda posto o correspondente ao dia de hoje, já que, puto como estou, vai sair uma merda pior do que já é.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Conversa de botequim - parte 2 -

     Rick ( sentando ao lado do piano) : Sam, que horas são agora em NY?
     Sam ( sem tirar os olhos do teclado do piano, onde toca As Times Goes By): Não faço idéia, chefe.
     Rick : Sam, quantos bares você calcula que possam existir em NY?
     Sam ( ainda com os olhos nas teclas): Também não faço idéia, chefe.
     Rick: Sam, me explica, com tantos bares no mundo, porque ela veio parar logo no meu?

         ( Uma versão de memória de um diálogo entre Dooley Wilson e Bogart no filme Casablanca)

     De minha mesa observo o vai e vem de amores de última hora nascidos de bebidas baratas e biografias exageradas. Não há piano de cauda, não há Sam dedilhando clássicos do Jazz, não há Rick hostilizando nazistas na mesa ao lado. Só meu tédio disfarçado em sorrisos forçados, minha bebida já no fim e a busca do garçom para mais uma rodada do mel do esquecimento.

     - E aí professor, quando sai o próximo livro?

     - Anda sumido mano velho. Não trabalha aqui mais?

     - Posso te fazer companhia?

     - Tá bom de gelo?

     - Acredita que aquela baranga tá sem calcinha? Santa decadência.

     Respostas monossilábicas. Como esticar o nada?

     Minha striper abandona a mesa. Traz numa das mãos uma garrafa de cerveja e na outra um copo pela metade. Me faz lembrar Copo Vazio de Gil. ... é sempre bom lembrar... senta-se na cadeira em frente. Ajeita a saia até o limite do comprimento máximo, passa a mão no couro liso como se tirasse dali farelos de pão, acomoda uma franja rebelde que cobria um dos olhos na orelha. Me presenteia um olhar embaçado.

     - O que eu faço dessa porra dessa vida? Tem alguma idéi?
     - Não. Nenhuma.
     - Se você, que é o dono das palavras não sabe eu tou realmente fudida.
     - Eu não sou dono de nada minha flor, muito menos das palavras.
     - E você é dono de que?
     - No momento do meu drinque, do meu tempo mais algumas coisas que me escapam por causa do álcool, mas que não deve ser importante.
     - Você fica cada vez mais esquisito.
     - Na falta de um adjetivo mais preciso, eu aceito o esquisito.
     - Vou nessa.
     - Asta la vista baby.
    
     Deixou órfãos na mesa a garrafa e o copo, ambos pela metade. Algum significado nisso?

                         - continua no próximo capítulo -
    

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Conversa de botequim.

     " Ninguém se atreve a dançar quando há sinais de tempestades no ar. Há uma cacofonia nos sons de folhas varridas pelo tornado de um ventilador de teto. O arrastar de cadeiras e uma porta de metal que geme às minhas costas fazem o contraponto sonoro. Garrafas brindam quando são ajustadas no congelador do balcão. Sons articulados de uma orquestra desafinada. Uma Babel sem dicionários. Um convite para ocupar o lugar que me cabe."

     " Por aqui, as canções não são iluminadas pelo sol. Olhar a cidade me acalma, desde que o fogo de incêndios criminosos não me firam as retinas. A intrusão da luz solar pelas frestas quadriculadas do bar é recebida por um ranger coletivo de dentes e olhares já desprovidos de mistério. E soluços estragam minha garganta. Decotes deixam de ser convites. Calcinhas se desmancham e escorrem por entre as pernas das mulheres como menstruações coloridas. Carruagens buzinam como relinchos de centauros apressados. O vinho se transmuda em água insalubre contrariando o milagre original. O último gole se recusa ao afogamento. Clarice acorda de um sonho tuberculoso. E não existe vacina para a epidemia de paus murchos e resmungos com mau hálito."
                                            
                                     Ensaio de Orquestra, menção honrosa no concurso de contos
                                     Newton Sampaio, categoria nacional, 2006.

     A mesa se localiza num ponto do salão onde eu possa ter uma visão panorâmica e a parede mal cuidada às minhas costas. A música ambiente é ruim o suficiente para não me incomodar. Meu copo pela metade bem como a garrafa de club soda. Evito buscar significado na simetria. Ao invés, encho o copo, bebo um gole generoso e quebro no dente uma pequena pedra de gelo. A cadeira em frente à minha insinua convidados que não posso ter certeza se serão bem vindos ao meu latifúndio.

     Ela entra, cercada de convivas. Striper de uma casa noturna e minha leitora fiel. Me cobra um novo livro cada vez que me vê. E pede que eu escreva alguma coisa dedicada a ela. E toda vez digo a ela que a história já está pronta na minha cabeça e que o título é Doente, Morena, título de uma música do Gil com o Duda Machado. E o pior é que a idéia da história se delineou quando vi o filme Encontros e Desencontros de Sofia Coppola. E o pior é que ainda não escrevi uma linha. Só algumas imagens passam pela minha cabeça de vez em quando. E o melhor é que a vejo muito pouco.

     Ela me vê, vem até mim e deposita um beijo casto nos meus lábios sem me cobrar nada.

                                              continua no proximo capítulo.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Coisas do mundo minha nega.

     Pro Chico, basta um dia para desatar fantasias. Pra mim, uma noite de insônia é tempo suficiente para criar labirintos de livros não lidos, filmes não vistos, no exíguo espaço entre o quarto e a sala, e eventualmente a cozinha para um chocolate quente e uma fatia de broa de fubá.

     Na folha de rosto do caderno de anotações o calendário cumpre seu papel de me lembrar quando e onde estou. Com o dedo, atravesso os dias até uma determinada data. Dali, daquela efeméride ainda por vir, seis décadas atrás Dona Maria fazia força para me expulsar do paraíso aquático, silencioso e aconchegante onde eu era ainda peixe.

     Inevitável não pensar sobre o tempo que oxida meu sangue, sobre espelhos borgeanos que multiplicam as marcas de batalhas de meu rosto cansado, sobre minha imortalidade estampada nos traços de minha neta.

     Do outro lado do mundo, cães ladram para a lua, imitando lobos.

     Abro o arquivo do meu próximo livro. O último de uma trilogia. A mesma frase está lá, imóvel como as pirâmides. Há seis meses ela espera que eu dê um fim à sua solidão de ser única. Me delete, ela diz, ou me multiplique para que o mundo possa fazer sentido. Me faço de surdo como os covardes se fazem de morto antes mesmo do calor da batalha.

     " As esquinas do mundo me pertencem". Primeira e única frase do Livro 1 de uma trilogia.

     Hoje à noite nem o canto das sereias de Ulisses será capaz de me acordar. E espero sonhar com a frase seguinte que me dará a chave do labirinto. A partir daí, andarei pelas ruas como se dançasse.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Estatuto da gafieira

     Eu escrevo livros. Tenho um milhão de motivos para não fazê-lo. Desde a política de editoras ao trabalho hercúleo de carregar pedras para construir pirâmides geometricamente imperfeitas numa comunidade de cegos. Então, por quê continuar se existem maneiras mais agradáveis de ganhar a vida? Uma boa pergunta que não sei se vou poder responder pelo que me resta de vida.

     Um diário. O último que li foi de Carlinhos de Oliveira. Terrível seus últimos anos de sofrimento. Me arrebentou por dentro. Não sei se ele editaria se ainda estivesse vivo na época da publicação. Acho que sim.

     Não vou desfilar aqui qualquer bloco de dores físicas ou dores de amor. Nem que tenha a ver com o conteúdo de meus livros. Só que daqui a 27 dias nasço outra vez, de acordo com um dos preceitos budistas. Não sou budista, mas me agradou a idéia. Anotações sobre o mundo num pré parto e num pós. Regada a música, meus filmes preferidos, meu mau humor atávico, meu exílio voluntário, minha solidão necessária, minhas paixões humanas e nascidas no celulóide mais o mundo impresso em folhas de papel.

     Já me coloquei na posição para que o parto seja tranquilo. Só acho que nunca vou estar pronto para as luzes fortes e os rostos mascarados que me esperam do lado de fora.

     O susto, o medo, o mal estar. Alguém quer dançar?